Vovó Vane acordou como sempre fazia. O silêncio da casa parecia mais profundo desde setembro passado, quando vovô Eliseu partira. Sessenta e cinco anos de vida compartilhada deixaram marcas em cada canto, em cada móvel, em cada fotografia desgastada pelo tempo. Naquele silêncio, ela encontrava a saudade, mas também a gratidão de ter vivido um amor longo e sincero.
Ela seguiu sua rotina matinal: um café preto forte, o olhar perdido na varanda, as orações silenciosas em que agradecia a Deus pelos anos vividos, pelos filhos, netos e bisnetos. Apesar da falta que Eliseu fazia, sentia que ele ainda estava ali, nas memórias, na casa cheia de histórias, nos risos e nos choros partilhados.
Naquela tarde de sábado, enquanto conversava na varanda, ouviu passos conhecidos no quintal. Foram chegando os netos, um a um, como quem não quer nada diziam: vovó vim dormir com você , com abraços apertados e conversas animadas. Logo, netos, netas e bisnetos surgiram, trazendo vida à casa com suas vozes jovens e sorrisos largos.
Era uma surpresa. A notícia correu rápido: todos os netos dormiriam com ela naquela noite. De repente, o silêncio dos últimos meses deu lugar à algazarra, aos pés correndo pela casa, às risadas que pareciam ecoar dos tempos em que seus próprios filhos eram crianças.
Brincaram de “adivinha quem é”, colocando Vane para, pela voz, identificar quem era o neto ou neta. Comeram bolo, cuscuz, pizza — sabores que misturavam memórias e aconchego. Na mesa do jantar, Vane olhou ao redor e lembrou de seus filhos e filhas, lembrou de vô Eliseu e de como ele estaria feliz com aquele momento. Viu que sua família herdou do pai e de vovô Norberto a alegria de viver e o gosto pela casa cheia.
Lembrou-se de como Eliseu sempre manteve a família unida, sendo exemplo de trabalho, dedicação e simplicidade. Olhou para os netos e bisnetos, cada um com um traço diferente, mas todos frutos daquela semente plantada com tanto zelo.
Durante a noite, enquanto os mais novos jogavam conversa fora e os mais velhos rememoravam histórias antigas, Vane percebeu o quanto o tempo era generoso. Sim, levara seu companheiro, mas deixara nela o privilégio de envelhecer vendo a família crescer. Testemunhara gerações — crianças que ela educou com firmeza, que aprendeu a corrigir e orientar, que cresceram com princípios sólidos, frequentando a escola dominical da igreja presbiteriana fundada por seu sogro Norberto.
O costume do “junta panela”, herdado daquela época, mantinha o laço entre todos. Aquele simples gesto de reunir a família aos domingos, partilhar refeições e trocar afetos, era a raiz que sustentava tudo aquilo. Enquanto o “junta panela” acontecesse, a memória de Eliseu, de Norberto e de tantos outros continuaria viva.
Antes de dormir, Vane passou pelos quartos improvisados na sala. Os netos e bisnetos já cochilavam, espalhados em colchões e sofás. Ajeitou um cobertor aqui, um travesseiro ali, e sentiu o coração aquecido pela certeza de que aquele amor, multiplicado em tantas gerações, permaneceria.
Ao se deitar, o coração cheio, sussurrou a Deus um agradecimento: pelo amor vivido, pela família que construiu, pelo privilégio de envelhecer cercada por todos aqueles que amava.
Naquela noite, ao fechar os olhos, não sonhou com saudade, mas com gratidão. Porque, no fim das contas, o peso do tempo pode ser leve quando se carrega amor suficiente para sustentá-lo.
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